segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Aprovação final da Lei de Identidade de Género no Parlamento

Na passada quinta-feira, dia 17, a Lei de Identidade de Género (LIG) voltou ao Parlamento, para ser novamente votada após a aprovação de Novembro, que enfrentou posteriormente o veto de Cavaco Silva. O GRIT, através de Luísa Reis, esteve no Parlamento, e traz-nos o relato.
Depois da apresentação pelo Governo e Bloco de Esquerda dos seus projectos de LIG, ambos aprovados em votação parlamentar, estes desceram à discussão na especialidade. O GRIT foi ouvido neste âmbito, realçando a necessidade da LIG respeitar tanto as necessidades efectivas da população transexual portuguesa, como as recomendações na matéria que o Comissário Para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Thomas Hammarberg, exprimiu num Issue Paper histórico sobre as pessoas transexuais e os seus direitos. Esta publicação, que aborda em detalhe as condições das populações transexuais dos Estados Membros do Conselho da Europa, veio no seguimento de uma reunião de 2008 em Estrasburgo com activistas desta área de cada país, e onde o GRIT, através da fundadora Luísa Reis, representou Portugal, bem como outra aquando da visita do Comissário a Portugal em 2009, em Lisboa.

Em Novembro, uma nova proposta subiu ao Parlamento, e foi aprovada com os votos a favor do PS, BE, PCP e PEV, bem como o de alguns dos deputados do PSD. Em Janeiro, contudo, o presidente decidiu vetar a LIG , não a promulgando. Todos os partidos envolvidos na aprovação anterior reiteraram a vontade de a levar novamente a escrutínio parlamentar na sua forma original, rejeitando a argumentação de Cavaco Silva.

Ás 18:12 de quinta-feira, o Parlamento voltou a falar da LIG. O primeiro deputado a falar foi José Soeiro, pelo BE. Reafirmando as razões para manter a proposta, declarou que “O Parlamento hoje dá uma lição de democracia ao Presidente”. Seguiu-se Francisca Almeida, pelo PSD, que criticou a “ausência dos critérios” para um diagnóstico de transexualidade no corpo do projecto, e lamentou que os partidos que apoiaram a LIG não tivessem “aproveitado a oportunidade” para corrigir o que entendeu serem “defeitos”, culpabilizando-os pela oposição do seu partido e eventual derrota do projecto. João Oliveira, do PCP, contrapôs afirmando que corresponde “ao legislador o que é da responsabilidade do legislador, e ao médico o que é da responsabilidade do médico”. Rejeitando a polémica, José Ferreira, do PEV, apontou que a situação actual das pessoas transexuais é “insustentável”, e que, pelo contrário, aprovar a LIG não seria “algo do outro mundo”.

Isabel Galriça Neto, do PP, repetiu os argumentos de Francisca Almeida sobre a “oportunidade perdida” pelos partidos que aprovaram a LIG. Finalizando as intervenções, Ana Catarina Mendes, do PS, reconheceu a Cavaco Silva “a legitimidade para vetar [a lei]”, mas também ao PS a “legitimidade para discordar”. Realçando a possibilidade de “atenuar o sofrimento” das pessoas transexuais, e, relembrando as palavras de Miguel Vale de Almeida, “preencher uma lacuna gravíssima e dar a oportunidade aos direitos”, rematou refutando os argumentos do PSD e PP, apontando que nenhum dos dois partidos tomou a iniciativa, desde o veto presidencial, de apresentar qualquer proposta alternativa.

O Presidente da AR anunciou então a votação, por meio electrónico. O voto de alguns dos deputados acabou por não ficar registado correctamente, levando cada um a confirmar verbalmente a sua posição. Todos se pronunciaram a favor, com a excepção única de Pacheco Pereira, do PSD. Contabilizados os votos, 123 foram a favor, 70 contra, e 10 eram abstenções.

Partido
Favor
Contra
Abstenções
PS
86
0
0
PSD
7
52
10
PP
0
18
0
BE
15
0
0
PCP
13
0
0
PEV
2
0
0

PS, BE, PCP e PEV votaram unanimemente a favor, com zero abstenções. O PP foi o único partido que votou contra em bloco, e o PSD o que maior dispersão teve.

A votação foi concluída pelas 18:35 – e o projecto de LIG ficou aprovado. Volta novamente a Cavaco Silva, que desta vez não terá alternativa senão promulgá-lo. A LIG entrará então finalmente em vigor – permitindo a todas as pessoas transexuais portuguesas que preencham os requisitos (um diagnóstico clínico é o suficiente) verem o seu nome e género reconhecidos através do Registo Civil. O que irá demorar possivelmente à volta de seis semanas– atirando-a já para o final de Março, ou princípio de Abril.

O GRIT congratula-se com esta decisão, para a qual tem trabalhado desde 2006, e dá os seus parabéns não só às e aos deputados que manifestaram o seu apoio, mas – e sobretudo – a tod@s @s homens e mulheres transexuais de Portugal!

Texto: Luísa Reis
Este texto é reproduzível mediante indicação da autoria e link respectivo

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Debate 'Lembrando Gisberta 2 - No Limiar da Lei de Identidade de Género'


Debate
LEMBRANDO GISBERTA 2:
NO LIMIAR DA LEI DE IDENTIDADE DE GÉNERO
Entrada livre

Organização
GRIT – Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade
UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta

Local
Clube Literário do Porto – rua Nova da Alfândega, n.º 22, Porto – auditório (ao pé da Ribeira e estação de metro de S. Bento), 25-02-2011, às 21h30.
Homenagem a Gisbertaevento a ocorrer no dia seguinte, 26, na Av. Fernão de Magalhães, onde Gisberta foi encontrada morta. Ponto de encontro: às 15h de 26-02-2011, no Campo 24 de Agosto, ao pé da estação de Metro.

Oradores
Luísa Reis (activista na área da transexualidade – fundadora e membro da direcção do GRIT)
dr. Nuno Santos Carneiro (psicólogo clínico, investigador e activista LGBT independente)
Moderação: UMAR

Há cinco anos, em Fevereiro de 2006, Gisberta Salce Júnior foi encontrada morta numa obra abandonada da Avenida Fernão de Magalhães, no Porto. A sua morte ocorreu após vários dias seguidos de insultos, provocação, agressão, tortura e violência sexual. Os responsáveis, um grupo de 14 jovens entre os 12 e 16 anos, ao cuidado de uma instituição de acolhimento de menores sob a tutela da Igreja Católica, atiraram-na por fim para um poço onde morreu afogada. Era uma mulher transexual a quem o Estado se negou reconhecer como tal – mulher.

O julgamento dos responsáveis pela sua morte não apurou que tivesse sido mais que 'uma brincadeira de mau-gosto que correu mal'. Não reconheceu o motivo claro das agressões mortais – a transfobia. E nem sequer a considerou vítima de homicídio, mas apenas que o seu 'cadáver', ainda vivo, foi ocultado pelos agressores no poço onde morreu.

Para o Estado Português, Gisberta não era mulher. Foi esta falta de reconhecimento que a privou igualmente de cidadania e de um projecto de vida. O novelo de exclusões em que foi sucessivamente aprisionada desfez-se finalmente com a sua morte, expondo o vazio sobre o qual foi forçada a construir toda a sua vida.

Em 2009, o GRIP e o GRIT relembraram o assassinato de Gisberta no terceiro aniversário da sua morte, denunciando a falta de reconhecimento da identidade das pessoas transexuais que esteve na raiz da sua exclusão. Desde então, os partidos e a Assembleia tomaram a iniciativa de iniciar o processo legislativo para uma Lei de Identidade de Género – uma medida que finalmente vai dar às pessoas transexuais portuguesas identidade e cidadania. Estamos no limiar de uma nova era para esta população – mas, neste dia, não deixaremos esquecer o nome de Gisberta!

Juntem-se a nós no dia 25 de Fevereiro, para que nunca mais ninguém esqueça!

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Lei de Identidade de Género Regressa Amanhã ao Parlamento

A Lei de Identidade de Género vai regressar amanhã ao Parlamento para ser votada pela segunda e última vez. Depois do veto presidencial em Janeiro, que impediu a proposta - já aprovada pela Assembleia da República com os votos do PS, BE, PCP, PEV, e de alguns dos deputados do PSD - de ser promulgada, a lei volta ao escrutínio parlamentar.
Tanto os partidos que redigiram as propostas iniciais de LIG - o BE e o Governo - como os que os acompanharam na votação - PCP e PEV - consideraram que a lei não merece alterações, e esta deve ser apresentada tal como o foi em Novembro. Desta vez, se voltar a colher uma maioria simples dos votos parlamentares, ao Presidente não restará opção senão promulgá-la.
A votação pode ser seguida in loco nas galerias do Parlamento (é necessária a apresentação de um documento oficial de identificação), ou em directo através da ARtv (tanto por televisão como webcast).
A Lei de Identidade de Género é o mais antigo e central dos objectivos do GRIT - uma conquista sem a qual as pessoas transexuais portuguesas continuariam sem identidade ou cidadania, nem uma base efectiva a partir da qual reivindicar o resto dos seus direitos. Apresentamos em 2006 a primeira proposta de Lei de Identidade de Género em Portugal, no contexto de um documento reivindicativo e informativo, também o primeiro do género, e ainda único. O dia de amanhã representa não só o culminar de cinco anos do nosso trabalho, mas também o início de uma era para a população transexual portuguesa!

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Notícia sobre Desassociação do GRIT da Associação ILGA Portugal - Público, São José Almeida

03.02.2011 - 12:28 Por São José Almeida
O GRIT - Grupo de Reflexão e Intervenção Sobre Transexualidade vai autonomizar-se da ILGA e formar uma associação autónoma de representação e de luta pelos direitos das pessoas transexuais.
Luísa Reis, da direcção do GRIT e que está na direcção da formação da nova associação, explicou ao PÚBLICO que esta decisão surge agora, no âmbito da aprovação pela Assembleia da República da Lei de Identidade de Género. “O GRIT tomou a decisão porque achamos que estamos num ponto fulcral do nosso percurso” afirmou Luísa Reis, acrescentando: “Esta lei vai trazer mais visibilidade e permitir que as pessoas transexuais se associem. Nesta fase, é preciso já que o activismo seja próprio.”
O GRIT nasceu em 2006, após o assassinato, no Porto, da transexual Gisberta Salce. E tem trabalhado no seio da ILGA – Portugal, associação de direitos de Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e trangéneros.
Agora com a nova lei que, apesar de vetada pelo Presidente da República, está em vias de ser reconfirmada parlamentarmente, as pessoas que se organizam no GRIT encaram esta nova fase do seu activismo.
A nova associação, à semelhança do actual grupo, representará apenas transexuais e não transgéneros. E manterá o seu objectivo de luta por direitos, mas também de luta pela “conquista de visibilidade pública e pela divulgação e explicação do que é a transexualidade”, explicou ao PÚBLICO Júlia Pereira, do GRIT. Esta activista sublinhou também a importância do trabalho do GRIT e da nova associação no “apoio às pessoas transexuais”.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Comunicado - Desassociação do GRIT da Associação ILGA Portugal

O GRIT - Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade vem, por este meio, anunciar a sua desassociação da Associação ILGA Portugal, dentro da qual tem desenvolvido o seu trabalho desde há mais de quatro anos, no quadro de Grupo de Interesse da mesma, constituindo-se como unidade autónoma e independente.

O GRIT é o primeiro e único grupo português dedicado exclusivamente à luta pela igualdade e pelos direitos da população transexual, e constituído apenas por pessoas transexuais. Iniciou a sua actividade em 2006 e, desde então, tem vindo a desenvolver vários projectos para denunciar e combater as violações dos direitos das pessoas transexuais.

Consideramos estar na véspera da maior conquista de sempre em Portugal para esta população: o reconhecimento da nossa identidade e cidadania, através da criação de uma Lei de Identidade de Género. Este tem sido o principal objectivo do GRIT, que tem trabalhado para garantir uma representação da população transexual junto aos partidos políticos, à Assembleia da República, e ao Conselho da Europa. Desenvolvemos também documentação reivindicativa e informativa sobre transexualidade, promovemos debates, tertúlias e actividades lúdicas, bem como asseguramos a resposta e apoio directo à população transexual – e prometemos fazer ainda mais!

Acreditamos que esta conquista não é o fim da luta pelos direitos da população cujos direitos são a razão da nossa existência, mas antes o início. É nossa convicção que foi dado o passo necessário para que as pessoas transexuais se mobilizem num activismo próprio e centrado nas suas necessidades e direitos. Não basta a nossa identidade ser reconhecida. Precisamos também da igualdade a nível social e laboral, e no acesso a bens, serviços e educação. Precisamos de cuidados de saúde que sejam mais eficazes e céleres. Precisamos que os estereótipos sejam desconstruídos e derrubados. Precisamos que as pessoas transexuais sejam, tanto na lei como na sociedade, as iguais de quaisquer outras.

Só um activismo voltado exclusivamente para as necessidades e direitos da população transexual conseguirá alcançar todos estes objectivos. Sabemos que só as pessoas transexuais têm a capacidade e legitimidade para trabalhar e se pronunciarem em seu nome. Queremos dar-lhes o espaço onde, em contraste com outros, elas se sintam capacitadas e empoderadas para o fazer.

Apenas uma plataforma autónoma e independente dará a possibilidade aos movimentos transexuais de alcançarem a maturidade, e permitirá um novo fôlego no caminho até à igualdade. Já contamos com doze membros, entre homens e mulheres transexuais, e queremos, sobretudo, crescer – e que cada vez mais pessoas transexuais se juntem a nós nesta viagem com destino à igualdade!

Pela Direcção do GRIT,
Luísa Reis e Júlia Mendes Pereira

contactos
luísa reis luisa.dreis@gmail.com

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Tertúlia 'Reflectir a Lei de Identidade de Género'

O GRIT - Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade - em parceria com a rede ex aequo - associação de jovens lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros e simpatizantes, vai realizar no próximo dia 15 de Dezembro, às 21h00, no Centro LGBT (Rua de S. Lázaro, 88, Lisboa), a tertúlia "Reflectir a Lei de Identidade de Género".
A 17 de Junho de 2010 o Bloco de Esquerda apresentou um projecto de lei que "Altera o Código do Registo Civil, permitindo a pessoas transexuais a mudança do registo de sexo no assento de nascimento". Poucos meses depois, a 7 de Setembro, o Governo apresentou uma proposta de lei que "Cria o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil e procede à 18.ª alteração ao Código do Registo Civil". A 29 de Setembro, foram as duas discutidas na Assembleia da Republica, e a 1 de Outubro aprovadas em Reunião Plenária. Daqui passaram à 1.ª Comissão de especialidade, onde um grupo de trabalho analisou as duas propostas, ouviu alguns especialistas e activistas, e redigiu o texto final, novamente aprovado em Reunião Plenária, a 26 de Novembro. Aguarda agora a promulgação do Presidente da República.
A inexistência de uma lei de identidade de género causou, até aos dias de hoje, sofrimento e humilhação continuados a todas as pessoas transexuais que procuravam ver legalmente reconhecida a sua identidade. Este "vazio legal" obrigava-as a imporem uma acção judicial contra o estado Português para que lhes fosse dada a possibilidade de alterarem o nome e o sexo nos seus documentos de identificação. E não falamos de dias, mas de anos à espera de uma identidade. Acompanhados de burocracia, dinheiro, humilhação, discriminação e exposição social, que desgastariam física e psicologicamente qualquer indivíduo.
Oradores:

Sandra Palma Saleiro (Socióloga, investigadora em "Transexualidade e Transgénero: Identidades e Expressões de Género")
José Soeiro (Deputado do Bloco de Esquerda)
Duarte Cordeiro (Deputado do Partido Socialista)
Júlia Mendes Pereira (Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade)
Luísa Reis (Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade)
Moderação: rede ex aequo
Apareçam! Contamos convosco!
Texto: Júlia Mendes Pereira

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Audição do GRIT e ILGA na Comissão de Especialidade

GRIT e Associação ILGA Portugal reunem com Grupo de Trabalho na Assembleia da República para discussão na especialidade dos projectos de Lei de Identidade de Género.
No dia 26 de Outubro, o GRIT e a Associação ILGA Portugal foram ouvidos pelo Grupo de Trabalho Parlamentar que está que está a analisar os projectos de Lei de Identidade de Género (LIG) do Partido Socialista e Bloco de Esquerda. O GRIT foi representado por Júlia Pereira, coordenadora do Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade (GRIT) e Luísa Reis, fundadora do GRIT, sendo a AIP ouvida na pessoa do seu presidente, Paulo Corte-Real. Juntos esclareceram as dúvidas e questões dos representantes dos partidos com assento parlamentar.
No seguimento da aprovação na generalidade dos dois projectos de LIG, a 01-10-2010, ambos com o objectivo de permitir que o reconhecimento legal da identidade das pessoas transexuais se torne célere, justo, inclusivo e eficaz, os projectos foram remetidos para a discussão na especialidade.
O passo seguinte é o projecto voltar ao Parlamento para ser votado, e, sendo então aprovada a LIG – uma das principais e mais antigas lutas do GRIT – as pessoas transexuais portuguesas vão ser finalmente reconhecidas como cidadãs e cidadãos plen@s do seu próprio país. Depois da conquista recente do direito ao casamento para as pessoas LGB, chegou a altura da letra T merecer também cidadania!
Texto: Luísa Reis

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

TRANSEXUAIS: O SEXO ESTÁ NA CABEÇA E O PARLAMENTO CONCORDA

por Sónia Cerdeira, Publicado no "i" em 29 de Setembro de 2010.

Os diplomas para mudar de nome e de sexo no registo civil serão hoje viabilizados à esquerda na Assembleia da República

Transexuais já não terão de ir a tribunal para mudar de nome. Lara Crespo, 39 anos, sempre soube que "qualquer coisa" não estava bem consigo. Mas só aos 25 anos, quando viu uma entrevista com Roberta Close (uma famosa transexual brasileira) percebeu. "Identificava-me com cada palavra e pensei ''espera lá, é isto mesmo que sou'' só não sabia era verbalizar".

Os diplomas do governo e do Bloco de Esquerda que querem simplificar a mudança de sexo e nome próprio no registo civil a quem tenha sido diagnosticada, clinicamente, uma mudança da identidade de género (transexualidade) serão hoje discutidos e viabilizados no parlamento. Deixará de ser preciso recorrer aos tribunais, um "processo longo e humilhante", garante o presidente da ILGA, (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero), Paulo Côrte-Real.

"A Aurora nunca fala de assuntos relacionados com mulheres, como decoração, culinária e moda", lê-se numa sentença do Tribunal Judicial de Almada, em 2006, apresentada pela ILGA para demonstrar que os requisitos habituais dos tribunais violam os direitos humanos. Em cinco anos, apenas 16 transexuais foram a tribunal mudar de sexo e de nome. Lara diz que será uma das primeiras a ir à conservatória.

"Não vou estar exposta ao meu passado. Vou deixar de dar explicações a toda a gente. É tão simples quanto isto. Acho que não estou a pedir muito", defende Júlia Pereira, 20 anos. Acabada de entrar na universidade, Júlia prefere não dizer o curso que frequenta. Diz que por agora tem tido a compreensão dos professores mas "nunca se sabe": "Explicar caso a caso torna-se humilhante." E lembra uma oportunidade de emprego em que foi recusada, num supermercado, porque os seus documentos não condiziam com a aparência e era exigido ter o nome numa "plaquinha" na lapela.

Também Lara garante que está no desemprego por causa da questão do nome: "Sei que está muito difícil para toda a gente mas ainda mais para nós. Recusaram-me muitos empregos por a minha imagem não corresponder ao papel. Muitas vezes me disseram que o currículo era bom mas que eu não correspondia ao perfil".

Nem governo, nem Bloco de Esquerda requerem a obrigatoriedade da cirurgia para a mudança de sexo e nome no Bilhete de Identidade. Basta "apresentar um relatório elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica que comprove o respectivo diagnóstico", lê--se na proposta do governo. Já o Bloco exige que o "requerente tenha estado, ou esteja há pelo menos um ano, em tratamento hormonal destinado a ajustar as suas características físicas às correspondentes ao sexo agora reclamado" e que "viva, há pelo menos dois anos, no sexo social reclamado". A omissão da cirurgia tem levantado objecções à direita. Paulo Côrte-Real lembra que existem pessoas transexuais que não desejam ou não podem, por questões de saúde, efectuar uma cirurgia genital.

"O sexo não está no meio das nossas pernas, está na nossa cabeça", diz Lara. "Os mais conservadores têm de aprender a ver além do nosso corpo." Para Júlia - que também é coordenadora do GRIT (Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade) - a obrigação de submeter alguém a uma cirurgia é uma "violação dos direitos humanos". "Iríamos acabar com uma discriminação para acrescentar outra", acrescenta Lara.

O deputado do Bloco, José Soeiro, afirma que o projecto do partido foi baseado na Lei de Identidade de Género espanhola: "Recordo que em Espanha não houve nenhum voto contra, nem dos partidos à direita", disse ontem o deputado.

Hoje os partidos discutem os diplomas em plenário e vão ser viabilizados à esquerda, com o consentimento do PCP. Lara diz que esta alteração na lei vai mudar a sua vida e, principalmente, o seu dia-a-dia. "Fui fazer uma mamografia e qual não foi o espanto das pessoas quando chamaram um nome masculino. Ficou tudo a olhar para mim." Com a mudança, situações como esta deixarão de acontecer.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

PELO DIREITO À IDENTIDADE

É altura de finalmente a lei portuguesa reconhecer que existem pessoas transexuais, simplificando as suas vidas e deixando de as remeter para a exclusão.

Trata-se de garantir o respeito pelos Direitos Humanos: uma causa que deve ser de todas e de todos nós.

EXISTEM LEIS DE IDENTIDADE DE GÉNERO NOUTROS PAÍSES EUROPEUS?

Sim. Exemplos positivos recentes são a Espanha (2007) e o Reino Unido (2005). Aliás, há duas décadas que existem recomendações do Conselho da Europa, bem como do Parlamento Europeu, no sentido da criação de legislação que garanta o reconhecimento da identidade de género das pessoas transexuais. Recentemente, o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, depois de reunir com activistas transexuais de toda a Europa (e também da ILGA Portugal), recomendou com veemência a criação de uma Lei de Identidade de Género nos países em falta nesta área, frisando ainda a importância da não-inclusão de requisitos atentatórios dos Direitos Humanos como a exigência de cirurgias genitais ou de esterilidade irreversível.

PORQUE É FUNDAMENTAL UMA LEI DA IDENTIDADE DE GÉNERO?

Para que as pessoas transexuais possam finalmente ter direito à sua identidade. Ou seja, para que o seu nome e sexo legais – que constam da sua identificação e documentos oficiais – possam estar de acordo com a sua identidade, sem necessidade de recurso aos tribunais.

A actual dependência dos tribunais constitui um convite à exclusão social das pessoas transexuais, porque com ela não é possível a construção de um projecto de vida. Durante muitos anos, é praticamente impossível o acesso ao emprego, à educação, a bens e serviços – e à cidadania. Operações tão simples como o uso de um cartão de débito ou tão relevantes como o exercício do direito de voto tornam-se um pesadelo. E o risco de assédio e violência é também particularmente preocupante, como nos relembra o assassinato precedido de tortura e crueldade de Gisberta Salce Júnior, em 2006.

A única solução que permite às pessoas transexuais terem uma cidadania plena e acesso a todos os seus direitos é a alteração da sua documentação legal para reflectir a sua identidade. E é fundamental que esse procedimento seja célere, transparente, acessível e abrangente.

VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS TRANSEXUAIS

Em Portugal, uma pessoa transexual tem que recorrer aos tribunais para que o seu sexo e nome legais sejam alterados e fiquem de acordo com a sua identidade de género.

Segue-se burocracia e lentidão, humilhação e desrespeito pela intimidade, a sujeição a visões caricaturais do que devem ser os homens e as mulheres transexuais - e a exclusão arbitrária de muitas pessoas transexuais.

UMA PESSOA TRANSEXUAL CONSEGUE QUE O TRIBUNAL RECONHEÇA A SUA IDENTIDADE DE GÉNERO?

Depende. Existe apenas jurisprudência sobre o assunto e esta não é vinculativa. Mesmo estando satisfeitos os requisitos habituais, houve vários casos em que a decisão foi negativa - o que introduz uma incoerência e instabilidade legais inaceitáveis.

'[...] nunca poderá convir ao Tribunal a deixar-se tomar por uma qualquer “pietas” [piedade] em relação à demanda do transsexual, atribuindo reconhecimento a um facto de mudança de sexo'
15ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, 2003

O não-reconhecimento da identidade de género de uma pessoa transexual já foi classificado por diversas vezes pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos como uma violação do direito ao respeito da vida privada salvaguardado no artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

COMO É O PROCESSO EM TRIBUNAL?

Longo e humilhante. Desde logo, uma pessoa transexual só pode entrar com um processo em tribunal no fim do processo clínico de transição, embora muito antes a sua aparência já não coincida com a documentação. Depois, o próprio processo em tribunal dura anos – e uma eventual decisão desfavorável implica ainda recursos.

Para além disso, são postas questões extraordinariamente íntimas sobre todo o processo de vida da pessoa transexual, e o tribunal pode até requerer que esta seja examinada por técnicos forenses, de forma invasiva e desnecessária.

'O seu sexo anatómico é caracterizado (...) pela presença de uma vagina de 10cm de profundidade, de 3 a 4cm de diâmetro, elástica e não causando dor à introdução do espéculo, apta à penetração do pénis erecto'
7º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, 1994

OS REQUISITOS HABITUAIS DOS TRIBUNAIS VIOLAM OS DIREITOS HUMANOS?

Sim. Para além da exigência de padrões de género arbitrários, os requisitos habituais incluem a obrigatoriedade de cirurgia genital e a esterilidade irreversível.

'A Autora nunca fala de assuntos relacionados com mulheres, como decoração, culinária e moda'
Sentença do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Almada, 2006

'Bem pode dizer-se, baseando-nos em Aristóteles, que a fêmea é o animal que nasce vocacionado para gerar no corpo outro ser.'
Acórdão da Relação de Lisboa, Secção Cível, 1986

‘(...) entende-se que a admissibilidade legal da mudança voluntária de sexo deve assentar nos seguintes requisitos: (...) ter sofrido intervenção cirúrgica modificativa dos caracteres exteriores do sexo'
3º Juízo/2ª Secção do Tribunal da Comarca de Oeiras, 1983

'Tais tratamentos são absolutamente irreversíveis e permanentes, tornando a pessoa A. incapaz de procriar (quesito 17º)'
13º Juízo Civil da Comarca de Lisboa, 1996

É importante frisar que existem pessoas transexuais que não desejam ou não podem efectuar uma cirurgia genital. É que muitas das restantes cirurgias e terapias no processo clínico de transição acabam por ser por vezes mais importantes para que, no quotidiano, haja o reconhecimento social de que se está perante um homem ou uma mulher.

Há um consenso científico de que a identidade de género não depende da vontade de realizar uma cirurgia genital. Impor a obrigatoriedade desta cirurgia para o reconhecimento da identidade é assim uma violação inaceitável do direito à integridade física (art. 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos). Da mesma forma, a exigência de esterilidade irreversível é, por sua vez, outra violação flagrante dos Direitos Humanos.

Cada pessoa deve ser livre de escolher os procedimentos médicos a que quer sujeitar-se, mediante recomendações de profissionais de saúde que podem ajudar a avaliar os respectivos riscos.

PARA QUE TODAS AS PESSOAS POSSAM FINALMENTE TER DIREITO À SUA IDENTIDADE DE GÉNERO.
______________________________________________________
PROJECTO TRANSFORMATION
Esta publicação tem o apoio da ILGA-Europe no âmbito do seu Human Rights Violations Documentation Fund. As opiniões expressas no documento não reflectem necessariamente qualquer posição oficial da ILGA-Europe.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

"À espera do Corpo Verdadeiro" no jornal Público

Andrea Cunha Freitas




Nem sempre é possível identificar e diagnosticar uma perturbação de identidade de género na infância ou adolescência (Adriano Miranda (arquivo))

Eles querem usar saias e cabelos compridos. Elas escolhem cortar os cabelos e vestir só calças. Não dizem que querem ser de um sexo diferente. Insistem que são de um sexo diferente. São crianças com uma perturbação de identidade de género. Casos raros de quem diz estar preso num corpo errado desde sempre. O que fazer com estas crianças? E quando?


Sentem que nasceram com o corpo errado. Não são rapazes que querem ser raparigas. Dizem que são raparigas com pénis. Não são raparigas que querem ser rapazes. Dizem que são rapazes com uma vagina. Nem sempre é possível identificar e diagnosticar uma perturbação de identidade de género na infância ou adolescência. São crianças que muitas vezes acabam por receber um rótulo de Maria-rapaz, "mariquinhas" ou, mesmo, homossexuais. Mas não é a mesma coisa. No mundo da transexualidade lida-se com algo que é muito diferente de orientação sexual: lida-se com a identidade. E a verdade é que quando os transexuais são recebidos pelos especialistas, já na idade adulta, dizem que estão à espera do verdadeiro corpo desde muito cedo. Desde sempre.

"Olá. O meu nome é Josie. Faço anos no dia 16 de Abril. Sou uma rapariga. E tenho um pénis." David Elisco, produtor do documentário Sexo, Mentiras e Género, da National Geographic, conta como conheceu Josie Romero, uma criança com oito anos, do Arizona, Estados Unidos. Foi através de um vídeo caseiro onde se via uma menina loira, sentada numa grande cadeira que lhe deixava os pés soltos a abanar no ar. Josie foi notícia em muitos jornais e programas de televisão como exemplo de uma criança com perturbação de identidade do género e porque está autorizada a iniciar os tratamentos hormonais quando chegar aos 12 anos.

No final do ano passado, os pais de Josie contaram ao mundo a história do seu filho Joey, que aos quatro anos lhes comunicou: "Sou uma rapariga." Primeiro, pensaram que o seu filho era homossexual e pareciam dispostos a aceitar o facto. Alertados pelo pediatra, entraram no conceito da perturbação de identidade do género e identificaram-se. Numa metade do armário da roupa, colocaram artigos para rapaz e na outra metade penduraram coisas de rapariga. A criança não hesitava e escolhia apenas as roupas de menina. Acabaram por aceitar que Joey era Josie.

Assim como foi exemplo o caso de Alex, que, em 2004, quando tinha 13 anos, conseguiu uma autorização do tribunal australiano para iniciar o tratamento hormonal. As notícias falam de uma criança que queria tanto ser rapaz que chegou a usar fraldas na escola só para não ter de utilizar os quartos-de-banho das raparigas. Ou o jovem de 16 anos que este mês obteve, em Espanha, a autorização judicial para fazer a cirurgia de mudança de sexo.

Num documentário de 2007, da cadeia de televisão ABC, a célebre jornalista Barbra Walters apresentou três outros casos de crianças transexuais, com entrevistas às próprias e à família.

De uma forma mais ou menos estridente, todas estas notícias tiveram o mesmo efeito: uma polémica discussão. Uma criança sabe o que está a dizer quando diz que é de um sexo diferente daquele que vemos no seu corpo? E devemos intervir? Como? Quando?

Para quem pensa sobre isto pela primeira vez é fácil cair na confusão. É fácil avançar para a conclusão precipitada de que são homossexuais. Ou, para as famílias, é mais fácil encarar estas manifestações como uma fase - e tentar ignorá-las. Mas é mais complexo do que isso. As crianças com uma perturbação de identidade do género não se caracterizam apenas pela escolha dos brinquedos, das brincadeiras ou das roupas que querem vestir e que, aos olhos do mundo, são do outro sexo. Zélia Figueiredo, especialista na área de sexologia que trabalha com transexuais no Hospital Magalhães Lemos, no Porto, diz que as histórias são todas muito semelhantes. "Quando lhes pedimos para escreverem a história do que está para trás há muitos pontos comuns, tantos que às vezes parecem a mesma história."

 

"São uns heróis"

Os relatos falam da infância como o marco do início do drama, diz Zélia Figueiredo. Sentem que têm um "defeito de nascença", uma deformação física, sentem repulsa pelo corpo com que nasceram. Sofrem com isso. À medida que crescem, escondem o corpo atrás de coletes que apertam o peito, recusam ir à escola, mutilam-se, deprimem, tentam o suicídio. Não é fácil entender. Não é fácil entendê-las. E, sobretudo, não é fácil ajudá-las.

"São uns heróis", conclui o especialista Pedro de Freitas, do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa. O sexólogo que acompanha vários casos de transexuais confirma que um dos traços comuns a muitas histórias é o facto de esta perturbação se manifestar em idades muito jovens e, frequentemente, na infância. Porém, o mais provável é que não tenha sido identificada como tal nessa altura. E tenha sido "abafada" pela presunção de uma mera fase mais arrapazada ou afeminada. Ou, mais tarde, erradamente encarada como uma questão de orientação sexual. "A questão da identidade de género não tem nada a ver com a orientação sexual", avisa Pedro de Freitas.

Nos casos que acompanha conheceu quem, em criança, se recusava a vestir saias ou, do outro lado, quem não queria outra coisa. "O drama começa em casa, depois na escola e acentua-se na puberdade. Uma das coisas mais terríveis para alguém que se sente homem é a menstruação", explica.

Se tudo parece apontar para uma criança ou adolescente com perturbação da identidade de género, o que fazer? "Apoiar. Desde que nos procurem cedo, nós apoiamos cedo. Mas não podemos intervir. Não posso passar uma receita para um tratamento hormonal antes dos 18 anos. É contra a lei." Mas há medidas capazes de minimizar o sofrimento.

Uma das mais importantes é acompanhar e apoiar psicologicamente a família, que também é afectada, e outra será, por exemplo, falar com os professores. Fazer mais do que isso é complicado. "Uma cirurgia irreversível de mudança de sexo numa criança está fora de questão. E também não me parece que alguém com 12 ou 13 anos tenha estrutura psicológica e maturidade para que se possa iniciar um tratamento hormonal", refere Pedro de Freitas.

Quanto aos pais, devem tentar o mais difícil: nem contrariar, nem incentivar, assumindo uma postura neutra. Antes disso, claro, devem procurar ajuda junto de profissionais de saúde.

"Estamos a confundir tudo"

A maioria dos casos de perturbações de identidade do género na infância e adolescência não é notícia. São raparigas e rapazes que se escondem, que gritam no silêncio ou que simplesmente sentem que "algo está errado" mas não sabem o quê. O especialista do Hospital Júlio de Matos não duvida de que estas pessoas nascem com esta perturbação. "Podem é não saber colocar o rótulo ou só tirar a cabeça da areia mais tarde."

"Flip" é o nickname num fórum de discussão numa associação que quer apoiar a juventude lésbica, gay, bissexual ou transgénero e promover a mudança das mentalidades em relação às questões da orientação sexual e identidade de género. "Só comecei verdadeiramente a tentar resolver a minha vida aos 20 anos, quando tomei consciência de que o que sentia era mesmo muito forte e, por mais que me esforçasse, nunca seria feliz tendo um corpo e um papel feminino no mundo", conta. No entanto, os sinais apareceram muito antes dos 20 anos. "Flip" é hoje Filipe mas lembra "a aventura da menina que desde os 3 anos se apresentava aos amigos com um nome masculino".

"Os meus pais faziam-me passar vergonhas incríveis desmascarando-me constantemente", conta.

Jó Bernardo tem 45 anos e prefere dizer que é transgénero [um termo mais abrangente que se aplica a pessoas que fogem dos papéis sociais de género]. Não completou a operação de mudança de sexo mas optou por um tratamento hormonal que lhe mascarou o corpo masculino com que nasceu. Só mais crescido é que terá aprendido a ler os sinais. "Estava tudo lá desde muito cedo. Desde que nasci. Tenho uma fotografia com o meu irmão gémeo em que vejo isso de forma clara. Tínhamos apenas dois anos, estávamos na praia de Santo Amaro de Oeiras, os dois, de mãos dadas, com um balde na mão e o mesmo fato de banho. A diferença é a forma como seguro no balde, com as mãozinhas para a frente, é que eu estou todo penteadinho, é que eu tenho as pernas fechadinhas..."

A forma como se segura um balde na praia não será, seguramente, um factor que entre num diagnóstico clínico de perturbação de identidade de género. Mas Jó sabe que era muito mais do que isso.

Quando se fala em crianças com esta perturbação, Luísa Ramos, psiquiatra no Hospital Conde Ferreira, no Porto, pede muita calma e bom senso. "Hoje vivemos uma grande confusão em relação ao que é o quê. Estamos a confundir tudo. Homossexuais com travestis, com transexuais... questões de identidade com orientações. E o mediatismo destas situações não ajuda a clarificar." A psiquiatra alerta para a ambiguidade que pode existir na definição de uma criança transexual. Chegar até um diagnóstico destes "não demora dois dias ou dois meses", diz. "É preciso uma avaliação longitudinal."

 

Só depois dos 18

"Em Portugal não se fazem intervenções de mudança de sexo em menores", afirma Rui Xavier Vieira, responsável pela comissão da Ordem dos Médicos que elabora os pareceres necessários para a realização de uma cirurgia de reatribuição de sexo, acrescentando que nunca foi apresentado nenhum pedido para um menor.

O especialista não hesita em desaprovar cirurgias irreversíveis "em crianças e adolescentes jovens". Têm de viver "presos" nos seus corpos até aos 18 anos? "Isso é linguagem dos grupos de pressão", responde. "Isto são processos irreversíveis, tudo tem de ser feito com muito cuidado."

Assim, sobre uma eventual intervenção antes da maioridade, o psiquiatra admite: "Isto está tudo em grande mudança. Não tenho nenhuma oposição, mas temos de pensar em formas de abordar essa questão. Podemos, eventualmente, atrasar as alterações da adolescência nesses casos. Temos de ser razoáveis e ponderar os riscos para a saúde dessa pessoa."

Alguns países já permitem o início do processo de mudança de sexo com um tratamento hormonal a partir dos 16 anos. Em Portugal é impossível. E mesmo em relação às intervenções em adultos, o país tem uma particularidade. "Somos o único país europeu que exige um parecer da Ordem dos Médicos para realizar este processo. Não se trata de nada imposto pela lei mas pela Ordem", constata o especialista do Júlio de Matos.

Sobre a idade mais adequada para intervir Pedro de Freitas tem duas respostas: "Os 16 anos são a idade ideal. Os 18 são a idade legal." Em qualquer caso, é essencial uma avaliação sobre o grau de maturidade da pessoa que está à nossa frente. "Conheço jovens com 16 anos muito maduros e pessoas com 20, 30 ou 40 que são umas crianças."

E é preciso cumprir a lei. É preciso uma avaliação feita por duas entidades independentes que tenham chegado ao mesmo diagnóstico, é preciso apoio psicológico, psicoterapia, iniciar a terapêutica hormonal, fazer um cariótipo (avaliação cromossómica), passar pela chamada prova real de vida, pedir o parecer da Ordem dos Médicos para realizar a cirurgia e, depois de realizada a cirurgia, avançar com uma acção contra o Estado exigindo a mudança de nome e sexo nos documentos de identidade (porque em Portugal não existe uma Lei da Identidade, ao contrário de outros países). Há situações em que, nesta fase final do processo, o tribunal pode ainda pedir uma perícia do Instituto Nacional de Medicina Legal para que se verifique que o sexo no corpo corresponde ao que está a ser reivindicado.

Tudo isto implica um processo que se arrasta por vários anos e que só pode começar aos 18. Enquanto isso, os transexuais esperam. "Não, enquanto isso, desesperam", corrige Pedro de Freitas. O único cirurgião que faz estas mudanças de sexo em Portugal é João Décio Ferreira. Apesar de estar reformado desde 2009, continua a operar no Hospital Santa Maria para atender estes pedidos.


Doença mental

Em Portugal já foram realizadas cerca de 100 operações de mudança de sexo. São cirurgias comparticipadas pelo Estado a 100 por cento uma vez que a Organização Mundial de Saúde incluiu a perturbação de identidade do género na lista de doenças mentais. "Apesar de existirem muitos grupos a exigir que deixe de constar nesta lista porque se trata de uma discriminação, acho que é bom para eles. Se sair da lista, os Estados desobrigam-se de os tratar porque deixa de ser doença. E aí vão ter de ser eles a pagar."

Outra questão: se antes dos 18 anos ninguém pode votar ou fazer algo tão simples como tirar a carta de condução, devemos equacionar atribuir-lhe o "poder" desta decisão tão radical de autodeterminação? Filomena Neto, que coordena o departamento de bioética da Sociedade de Advogados José Pedro Aguiar Branco & Associados, sabe que esta é uma questão difícil onde não existe "preto e branco".

"Julgo que na menoridade uma autorização para iniciar um processo de mudança de sexo teria que passar sempre por uma tutela jurisdicional que verificasse o processo. Não para discutir a opinião dos médicos, mas para assegurar que foram dados todos os passos para proteger aquele menor", defende Filomena Neto, sublinhando, no entanto, que esta "possibilidade legal" só deveria existir a partir dos 16 anos.

"Aos 12 anos, por exemplo, choca-me. Acho que ainda não existem capacidades para essa autodeterminação. Mesmo uma autorização dos representantes legais não deveria ter influência. Teria de se ouvir o próprio. A verdade é que às vezes fazemos as maiores asneiras com as melhores das intenções."

Há muitas perguntas e não há uma só resposta para um território tão ambíguo e complexo. Antes de tomar uma decisão irreversível é imprescindível eliminar essa ambiguidade e complexidade até ao limite do possível. Para que uma mudança destas seja algo tão simples como o caso que Pedro de Freitas lembra sobre uma mudança de sexo iniciada aos 18 anos. "Esta pessoa afirmava que sabia desde os dois anos que era mulher e tinha o corpo errado. Completámos o processo de mudança e hoje é uma mulher fantástica, muito bonita." Ela juraria que sempre foi mulher.



 
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